Muito haveria para falar sobre a tão rica obra, estudo e vida de Nuno Teotónio Pereira. Revisitando Fernando Távora, revisitamo-lo também e o momento em que ambos se conheceram: logo após a publicação de “O Problema da Casa Portuguesa”, em 1947. Ao ler o texto, Nuno Teotónio Pereira parte de imediato para o Porto para conhecer o seu autor, o igualmente jovem Fernando Távora, então com apenas 24 anos. Dois jovens, com pouco mais de 20 anos, reflectem sobre a existência (ou não) de uma “Casa Portuguesa”…
Os seus percursos irão cruzar-se novamente um pouco mais tarde, em 1955, quando por decreto se determina a realização de um “Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal” numa “tarefa de cuidadosa investigação das disposições construtivas patentes nos documentos arquitectónicos de todas as épocas existentes nas diversas regiões do nosso território metropolitano, a realizar pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, sob a orientação do Ministério das Obras Públicas e com a cooperação das instituições nacionais habilitadas a prestar contribuição útil para o melhor resultado do empreendimento.” D.L. n.º 40349 de 19 de Outubro de 1955
Neste “empreendimento”, com o apoio e subsídio do Governo, divide-se o país por províncias e em equipas de trabalho*, havendo Fernando Távora de participar na equipa responsável pelo Minho e Nuno Teotónio Pereira na equipa dedicada à Estremadura. Ambos com pouco mais de trinta anos de idade, irão calcorrear toda a província que lhes competia num trabalho de campo exaustivo de recolha de milhares de dados, representados num também extenso número de textos, fotografias e desenhos de catalogação desta arquitectura vernacular, por vezes tão longe e tão inacessível. Os resultados, seriam tornados públicos seis anos mais tarde, em 1961, com o título “Arquitectura Popular em Portugal”, editado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos e mais tarde reeditado por diversas vezes.
Página do “Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal” in João Leal, “Arquitectos, engenheiro, antropólogos: estudos sobre arquitectura popular no século XX português”. Conferência José Marques da Silva 2008. Fundação Marques da Silva. P.45
Das memórias de Nuno Teotónio Pereira sobre este trabalho e sobre este inquérito, transcreve-se um excerto da entrevista de Carlos Guimarães, João Crisóstomo e Luís Loureiro, publicada originalmente em NU nº 27 e disponibilizada no Portal Vitruvius em Maio de 2008.
«Eu gosto muito do território – se não tivesse sido arquitecto tinha ido para geografia, conheço Portugal de lés a lés, e também participei naquele inquérito à arquitectura popular portuguesa que reforçou essa componente. E sempre apreciei muito a arquitectura vernácula, as suas expressões, as paisagens, o carácter de cada vila, de cada localidade. Isso também tem reflexo nas nossas obras.
Nós participamos naquele momento crítico da arquitectura moderna em que esta sofreu de dogmas. Do outro lado da avenida de Roma há uns prédios compridos paralelos uns aos outros, assentes em cima de pilares com empenas cegas. Havia esses dogmas da arquitectura moderna, os pilotis, coberturas horizontais e nós sempre fomos fazendo telhados, de uma maneira ou de outra. E quisemos participar nesse movimento crítico de revisão da arquitectura moderna contra os dogmas para se adaptar melhor às condições locais, a cada ambiente.»
Tinha a ver com tornar o espaço identificável por toda a gente…
«Sim, exactamente.»
No fundo democratizar a arquitectura…
«Organizá-la, regionalizá-la. E aqui o Távora teve um papel muito importante.»
É engraçada aquela história de ter ido ao Porto de propósito conhecer o Fernando Távora depois de ele ter escrito o texto sobre a casa portuguesa…
«Sim, eu fui lá. Esse artigo é um artigo histórico e o publicamo em livrinho. Acho que fizemos essa publicação em caderno.»
Das memórias de Fernando Távora, a confirmação da preconizada semelhança (ou influência) da arquitectura popular e da arquitectura moderna:
«E eu lembro-me que na véspera da visita do Salazar à SNBA fez-se uma projecção de slides para o Arantes e Oliveira e passou em determinada altura um conjunto de casas – no Sul – todas iguais, com aquelas chaminés alentejanas fortes, uma solução bastante fechada. E o ministro disse “que bonito, isso parece arquitectura moderna”. E eu que estava atrás – lembro-me perfeitamente disto – disse-lhe “mas, ó sr. ministro, o Inquérito vem exactamente confirmar a existência de grandes similitudes entre a arquitectura popular e a arquitectura moderna”. E ele disse-me assim: “o sr. arquitecto pense isso, mas não diga isso amanhã ao Sr. Presidente do Conselho”.» Fernando Távora, 1996. in João Leal, “Arquitectos, engenheiro, antropólogos: estudos sobre arquitectura popular no século XX português”. Conferência José Marques da Silva 2008. Fundação Marques da Silva. P.39
Nuno Teotónio Pereira e Fernando Távora. Dois arquitectos conhecedores profundos do “nosso” território, da “nossa” arquitectura popular. Dois arquitectos que tão bem desenharam a arquitectura moderna em Portugal.
ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL. Edição do Sindicato Nacional dos Arquitectos.Lisboa. 1961. Primeira edição.
*Constituição das seis equipas de cada província:
Zona 1 – Minho
Fernando Távora, Rui Pimentel e António Menéres
Zona 2 – Trás-os-Montes
Octávio Lixa Filgueiras, arnaldo Araújo e Carlos Carvalho Dias
Zona 3 – Beiras
Francisco Keil do Amaral, José Huertas Lobo e João José Malato
Zona 4 – Estremadura
Nuno Teotónio Pereira, António Pinto Freitas e Francisco Silva Dias
Zona 5 – Alentejo
Frederico George, Azevedo Gomes e Alfredo da Mata Antunes
Zona 6 – Algarve
Artur Pires Martins, Celestino de Castro e Fernando Ferreira Torres